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sexta-feira, 25 de abril de 2014

Uma vida, cinco anos, e quinze dias [PARTE I]

“Não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem.”
Dito popular
Por Antônio C Pereira
DIA ZERO
    A noite estava quente, mais do que o esperado para o verão, e naquela parte decadente da cidade, a temperatura fervilhava com as pessoas se acotovelando diante da fita amarela suspensa por cones laranja e branco reflexivo. A brisa só aumentava a sensação escaldante presente ali. O cochicho irritante percorria todos os quarteirões, trazendo mais e mais observadores para a cena bizarra que se desenvolvia naquela viela.
– Não pode passar desta fita, me'rmão. – Disse o policial em tom rude e imperativo
– Isso aqui dá permissão – disse o homem que estava a frente da multidão, tirando algo do bolso e mostrando ao policial.
– Desculpe investigador, pode passar.

– Vai levanta a fita ou tá difícil?
– Sim, pode passar.
    “Olha só pra esse coxinha, a fivela do cinto brilhando, o coturno polido e com o couro esticado, o uniforme novo com os vincos bem marcados durante o processo de passar roupas. Sargento? Aposto que é filho de algum grandão da PM, nunca viu dificuldade não é filho?”, pensava o policial civil, enquanto caminhava, e via-se o contraste entre os dois, inspetor Malaquias trajava uma calça jeans surrada e uma camisa com pequenas faixas azuis verticais, aberta até o terceiro botão devido ao calor, poderia ser confundido facilmente com um bicheiro de segunda linha, já beirando os 55 de idade.
– Pode me atualizar? – Pediu o investigador, desta vez, era ele que usava o tom imperativo e rude.
– Mas eu já disse tudo, não ouviu? Bom, umas “profissionais” estavam entrando no beco, talvez para se aliviarem, e deram de frente com a bizarrice, um homem cortado ao meio na altura da cintura, saíram gritando, ligaram para a Polícia Militar. Chegamos e cercamos a área e entramos em contato com vocês.
– Já sabem a identidade do sujeito?
– Sim investigador, Álvaro Caeiro, 36 anos, alguns processos, mas nenhuma condenação, respondeu o sargento puxando pela memória.
– O Cairo da Indústria Alva?
– Sim.
– Aquele que foi investigado por atentado ao pudor, estupro, abuso moral, e mais um caminhão de denúncias que não saíram do B.O.?
– Esse mesmo, já o conhecia?
– Não, mas já ouvi um monte de porcaria sobre ele. Então pegaram o safado.
– Acho que foi um pouquinho pior.
– Como?
– É melhor o senhor ver como está a cena.
    A cena era realmente surreal, parte do corpo jazia no chão inerte, o sangue escorria pela parede como se a metade ali presente tivesse sido arremessada contra a parede de um dos hoteizinhos que se projetava até o meio do beco, sujo, mal cheiroso e sem iluminação descente. A mancha de sangue começava mais ou menos na altura onde deveria ser a cintura do sujeito, o corte era reto demais e muito estranho, como se a outra metade tivesse saído dali como naqueles desenhos animados do Hanna Barbera. O sangue escorrera em vários sentidos, mas não se via qualquer sinal da outra metade homem, ou se ela havia sido arrastada dali.
– Tá uma merda do caralho não é inspetor?
    Malaquias olhou o jovem, que ostentava um sorriso largo e orgulhoso, como se tivesse dado sua primeira golada de cerveja na frente dos amigos para mostrar a sua masculinidade.
– Limpa essa boca suja, porra, tu beija tua mãe com essa cova? – Neste momento, a face severa de Malaquias, em nada transparecia o prazer que sentia agora, quase um prazer infantil, como quando um garoto descobre o banho gelado no verão tórrido como aquele estava sendo.
    Todo o contexto e o cenário daquele possível crime irritava Malaquias, as pessoas se aglutinando e discutindo o que tinha ocorrido, as “profissionais” fofocando e seus cafetões mandando, discretamente é claro, que voltassem à espera, o ar que subia do chão quente que trazia o cheiro de vodca barata e urina, tudo isso fazia o velho Malaquias se perguntar até quando aguentaria aquele purgatório.
– Ei, sargento, já coletou os depoimentos?
– Nada de útil, a perícia também está rodando por aí, pra ver se cava alguma coisa.
– E a outra metade do corpo, alguém tem ideia de onde esta?
– Não, tudo o que se sabe foi uma gritaria no beco, a voz de um homem pedindo socorro, Ninguém ligou, acharam que fosse um qualquer que deu uma “brincada” e queria escapar sem pagar.
– É estranho mesmo, esse cara, aqui neste lugar não combina, até a camisa dele foi cortada, e na mesma altura do corpo, muito estranho, – disse Malaquias em tom reflexivo enquanto contemplava e novo o meio morto – espere.
    O investigador notou agora, uma mancha enorme de sangue que cobria toda a testa, e escorria pela face, já meio seco. Não deu atenção na primeira vez que viu isso, pois acho que se tratava de um mero ferimento causado pela queda do corpo para frente, mas agora percebeu que o resto do sangue, ainda estava em estado líquido, e o incrível era que o pessoal da perícia deixou passar, como era Sexta a noite, essa equipe já devia ter umas cervejas na cabeça.
– Tem um papel aí sargento?
– Não, mas tenho um lenço, esse calor bota a gente pra suar….
– Me dê ele e me arranje um pouco d’água limpa.
– Pra tomar?
– Me arranja loGO DROGA.
    O sargento coxinha entregou o lenço branco e saiu a procura de água, Malaquias continuava a fuçar aqui e ali, primeiro em volta do cadáver, depois no bolso da camisa deste, colarinho, mangas da camisa branca de linho, aparentemente nova, usando a bic para manipular o tecido sem comprometer o lugar ou deixar suas próprias marcas por ali. Olhando de soslaio Malaquias pôde ver o sargento coxinha voltar com uma garrafa d’água fechada, e suando de tão gelada, por um segundo engoliu seco, com desejo de bebê-la, mas esta teria uma utilização menos nobre no momento.
– Tá aqui inspetor, não achei gasificada, mas vai servir para matar a sede.
– Se este presunto tiver sede, eu vou dançar “Madalena” – dizendo isso, Malaquias abriu a garrafa e umedeceu o lenço.
    Depois disto, passou levemente na face do morto, que olhava fixamente para o ombro esquerdo. A medida que o sangue seco era hidratado começou a se desfazer e aderir ao lenço do sargento, que olhava com um misto de surpresa admiração, e depois de algum tempo, a pele da testa do morto estava limpa e exibia uma ferida estranha, um losango, aparentemente cortado com um estilete, e, dentro e bem centrado, um círculo perfeito sem pele como um ponto final, ou a gema do ovo poligonal, ambos, sargento e inspetor, contemplaram por um período o achado, toda a movimentação em volta desta cena, pareceu diminuir, até cessar por algum tempo, fora de qualquer medição humana.
– Nunca vi isso, será ocultismo ou algum psicopata? Perguntou o oficial da PM.
– Não sei, não sei, mas vamos ver, respondeu, mais para si mesmo do que para o companheiro, ao mesmo tempo que estendia o lenço sujo a ele.
– Toma, entrega para a perícia, se tivermos sorte, vai ter alguma coisa além do seu DNA, e a do amigo aqui no chão. Se for um menino me avisa, concluiu em tom jocoso.
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