Powered By Blogger

terça-feira, 20 de maio de 2014

Uma vida, cinco anos, e quinze dias [PARTE III]

DIA CATORZE

    Como de costume, Malaquias chegou ao departamento e foi atrás de um bom copo de água, aquela onda de calor, que já durava mais de 40 dias, o deixava sempre com sede e muito irritado. Quando chegou no seu escaninho, ouviu a voz de seu leal amigo chegando pelo corredor, chamando o seu nome.
– Chegou hoje cedo o resultado do material na ferida e no lenço do sargento....
– Coxinha – atalhou Malaquias.
– Como? Já têm apelidos de namoro? – brincou Cabral. – Bom, está aqui o resultado, e como o pessoal lá do laboratório sabia que era para você, fizeram tudo completo e com a maior velocidade que puderam.
– O que temos?
– Não sei meu amigo, deixei essa honra pra você.
    O inspetor estranhou o peso do envelope pardo que lhe foi estendido, abriu e retirou o chumaço de papéis lá de dentro, percebeu que haviam mais folhas que o normal, e começou a folhear.
– Isso só pode estar errado – constatou incrédulo o inspetor ao terminar de ver a papelada.
– Como? – disse o delegado com ar de interesse, conhecia o homem à sua frente, e o que quer que lhe deixasse abismado era digno de ser compartilhado.
– Os laudos apontam que o corte na testa da vítima, apresenta resíduos compatíveis com resíduos de mangue, além disso, foi feito com um objeto perfuro cortante bem afiado. Existem ainda, vestígios de prata, com a idade estimada de 500 anos – a última parte referente aos vestígios de metal foi dito com voz fraca e vacilante.
    O silêncio se levantou entre os amigos como uma pesada cortina ante uma janela iluminada pelo sol de verão, parados no corredor, ambos olhando para a folha, no qual os técnicos haviam impresso o laudo com a datação do metal. De súbito, caminharam pelo corredor, ao mesmo tempo, como se precisassem de ar puro para digerir o disparate em tinta negra, sobre a celulose branca. As incongruências e as impossibilidades cercavam esse caso, a busca pelo símbolo, ou seja, lá o que era aquilo na testa do defunto, não dera em nada útil até o momento. A única pista concreta era que, esse não era um caso isolado, haviam mais três anteriores, com uma única característica em comum, essa marca na testa, diferentes entre si, mas iguais no padrão. Além disso, o primeiro caso, o único que conseguira ler toda a papelada do caso, também se tratava de um homem com inúmeros julgamentos e um número proporcional de absolvições perante a justiça, os demais casos, ainda deveriam ter as pastas desenterradas de algum fórum ou delegacia, o que poderia levar muito tempo. Malaquias já começava a achar uma grande ironia, pois ainda ouvia as conversinhas de canto de corredor, em que ele era o “velho doido”, “vovô buscapé” e “biruta”, e esse caso vinha sobre medida para ele, um caso maluco para um doido.
    O inspetor e o delegado pararam à frente do departamento, observando o vai e vem de pessoas na rua, enquanto examinavam suas consciências, o delegado Cabral fumava um cigarro em longas baforadas, enquanto Malaquias sorvia pequenos goles de água e imaginava o que as pessoas debaixo daquele sol estavam pensando ou imaginado, essa manobra visava distrair por algum tempo do problema que era esse caso. Sua cabeça girava em todas as direções e posições, mas não divisava, nem de longe, uma saída lógica. Por fim, Cabral quebrou o longo silêncio ao terminar o seu Belmont.
– Vou voltar para minha sala, antes que todos achem que sai de fininho, e antes que resolvam ir buscar pizzas na puta que pariu – disse o delegado, já de volta ao bom humor.
– Vai na fé – respondeu Malaquias, meio para dentro, ainda perdido nos pensamentos – Tenho uns endereços aqui, e vou dar uma checada, quem sabe não cavo algo com as testemunhas.
    Estes endereços ao qual o inspetor se referia, já estavam em seus bolsos a alguns dias, mas estava adiando esses encontros, em geral muito desgastantes, pois nem todos quereriam falar, ou falariam de graça. Outras testemunhas nem estavam nestes endereços informados à polícia, e com esse verão estranho seria ainda pior essas acareações. Pensou também no material coletado que apontava composições compatíveis com o mangue, não era bom de matemática, mas, mesmo com o helicóptero voando por todo o dia, levaria uns cinco, talvez seis dias para cobrir toda essa área se o clima ajudasse. Mas o governo e os grandões da civil jamais aprovariam um disparate desse, se tentavam economizar até nos treinamentos e na reciclagem de agentes, preferindo videoaulas às antigas palestras, de lá voos de reconhecimentos sem grande necessidade. Com esses pensamentos, caminhou até o estacionamento e saiu com o carro.
    As sessões de perguntas e respostas não ajudaram muito, como o previsto. Pessoas que frequentam aquela área da cidade não simpatizam com os servidores públicos, seja para o que for, alguns com medo de serem reconhecidos, outros por terem implicações com a lei, mas já era sabido por Malaquias que, dificilmente, seria dali que sairia a chave mestra deste mistério. Mas foi no caminho de volta que teve uma epifania, e trocou de rota, e tomou o caminho para hotel, cuja parede ajudava a formar o beco do local do “crime”. Ao chegar, pediu um quarto, um quarto específico, claro que antes de entrar, deixou o carro no local mais seguro que pode achar, em frente a um posto da polícia militar, e deu algumas voltas no quarterão para planejar a ação.
– Eu vou esperar uma pessoa, assim que ela chegar, vai ligar para o meu celular, mas eu já gostaria de entrar para o quarto – disse o policial.
– Sim, mas vai custar um pouco acima da tabela – disse o homem atrás do balcão.
    Se chegasse botando banca de polícia, o recepcionista colocaria todos os problemas do mundo para evitar a investigação, mas se pingasse algum dinheiro de um cliente desconhecido com exigências incomuns, mas não exageradas, seria mais fácil de Malaquias chegar ao seu objetivo, olhar o hotel por dentro e ficar no quarto do térreo, com a parede virada para o beco. Ao entrar, trancou a porta e começou a procurar e observar tudo daquele lugar, poderiam ter atirado a parte do corpo sem grande esforço e com certa facilidade de deixa o local no meio do alvoroço que ocorreria após a descoberta, ou talvez até antes disso. A parede era incomum para os padrões brasileiros, pois a alvenaria era recoberta por uma outra camada de madeira, ou material parecido, no qual era aplicado o papel de parede, e não a pintura costumeira, viu que uma parte estava estranhamente estufada, e ao arredar um móvel do quarto encontrou um pequeno ponto escuro, que lembrava o material do solado de sapatos finos mergulhado na madeira como se fosse parte desta, então teve uma ideia, a primeira pista real surgira.
– Vou só ali no carro colega, esqueci uma coisa, disse o investigador ao balconista, e este apenas assentiu.
    Ao chegar no automóvel, abriu o porta-malas e vasculhou entre as ferramentas a procura de uma chave específica, e achou, a chave de roda, em forma de L, e a camisa extra que sempre carregava, saiu do plástico em que jazia, para dar lugar à ferramenta. Voltou para o hotel, acenou com a cabeça para o homem novamente, e entrou no quarto. Trancou a porta e começou o trabalho duro. Envolvendo a chave de roda no lençol, Malaquias esperava fazer pouco barulho quando começasse a bater contra o madeirame, mas ainda sim, com o início da exploração, houve bastante barulho, mas as pessoas naquele lugar estavam mais preocupadas com outras coisas, por isso não foi importunado ou questionado sobre a bagunça. Em pouco tempo quebrou a perde de madeira e viu a alvenaria. Entre essas duas paredes, corria o encanamento de água e esgoto, o escuro neste espaço era total, mas o mal cheiro era inconfundível, havia carne em avançado estado de putrefação ali, e para ter certeza, achou uma caixa de fósforos, riscou um palito e enfiou cuidadosamente na abertura que produzira, e a alguns centímetros de distância pode vislumbrar o que estava estufando a parede, parte do mistério estava resolvido, a metade que faltava do senhor Caeiro estava ali. Ligou para o departamento de polícia e para os técnicos, e em poucos minutos o circo estava armado de novo.
    Foi bem difícil retirar os restos mortais do executivo de onde se encontravam, retirar o madeirame foi fácil, mas a parte superior, a cintura para ser mais preciso, parecia ter se fundido à alvenaria do prédio, sendo preciso cortar o meio cadáver. O investigador acompanhou todo o processo de perto e depois de terminado os serviços, resolveu que já era hora de voltar para casa.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Uma vida, cinco anos, e quinze dias [PARTE II]

DIA CINCO

CINCO ANOS ANTES

– Por falta de provas, não podemos concluir, se o réu pegou a arma para cometer o crime que lhe foi imputado ou esta estava jogado atrás da porta como afirma a defesa. Fato, é que nunca teremos certeza de quem ou qual o motivo do assassinato da vítima, sra. Malaquias, portanto o júri aqui presente, assim como o juiz que vos fala, declara o acusado, Caio Alvares Malaquias inocente das acusações. Fim da sessão.
….
– Você foi inocentado Malaquias, mas devido ao grande apelo público, eu, no cargo de superintendente, não posso permitir que continue em seu cargo. Por tanto, seu novo posto a partir de amanhã, será a de escrivão do novo delegado a ser nomeado.
….

QUATRO ANOS ANTES

– Você não gosta do cargo de escrivão não é Malaquias? Pode falar, apesar de estar sentado na sua cadeira, somos amigos, e eu não estou aqui porque quero. Vou cavar algo para você. Deixa com o Cabral aqui.
….
– Meu amigo, saia de trás dessa cadeira, a partir de hoje será como nos velhos tempos, pega tudo la dentro e volte para as ruas. Não precisa agradecer, queria poder fazer mais, mas se cavar mais fundo, vai desmoronar em nós dois esse buraco.
….

TRÊS ANOS ANTES

– Esse aí não é o bunda suja que dedou o coronel? Vamo dar um corretivo nele….
….
– Ele tá morto? Ah, tá respirando, bota aquela surpresinha no bolso dele, enquanto eu ligo pros homi…. vai da chabu, mané….
….
– Essa é a última vez que converso com você Malaquias. Eu, como superintendente, já tô de saco cheio de falar com você. Vai lá e pede aposentadoria, é uma ordem, vai pescar e deixa todo o resto de lado. É UMA ORDEM!
– Se você não se aposentar, vão reabrir o antigo inquérito da morte da sua esposa, e com essa droga que estava no seu bolso, e esse laudo do psiquiatra que o Cabral fez sumir do processo, tu já era.
– Aqui atesta que tu é pinéu, todo mundo da polícia já sabe desse laudo, e só não dá mais merda, porque tem gente que te respeita. Sai por cima Malaquias. Vou repetir, é uma ordem
….

DOIS ANOS ANTES

– Fala meu amigo, é o Cabral. Sim, eu sei…. Não, o superintendente rodou, e tá uma zona isso aqui, eu cavei de novo, e se você ainda tiver afim, tenho a sua vaga de inspetor aqui guardada.
– Não, fica tranquilo, é sua, sem parceiro pra te pentelhar. Isso venha amanhã para a reintegração. Abraço.

    Era essa a rotina do inspetor Malaquias todas as noites, rever todos os pontos fatídicos e agradecer ao seu amigo de infância, Cabral, pela força. Apesar dele estar agora ocupando a cadeira que um dia o investigador ocupara, não havia rancor por isso, Cabral era um bom sujeito, e tocaria a DP com presteza e honestidade, se fosse ele Malaquias, a escolher, teria feito essa escolha sem pensar duas vezes. Tomou o diazepan e o sono veio como uma tempestade de verão, sem sonhos, sem remorsos.
    Quando acordou, foi um sobressalto, pois ouviu o próprio nome numa voz feminina vinda de algum canto escuro do quarto. Malaquias passou a mão na testa e tirou o suor frio que umedeceu toda a palma da sua mão direita, escorreu frio até o cotovelo, como se gelo, e assomou-se com o líquido que vertia da axila, até pingar e deixar marcas no lençol onde as gotas caíam. O relógio marcava 3:00 da madrugada, a hora do demônio, a hora das bruxas, a hora de toda a sorte de mal que rastejava sobre e sob a terra. Só havia uma alternativa, pegou o bloco de notas e um lápis no criado-mudo e desenhou a marca que vira no morto a algumas horas, e não sabia o porque se lembrara disso só agora. Vestiu a roupa e saiu com o intuito de ir a chefatura, remexer nos arquivos para ver se existia algo parecido, e se não achasse nada, passaria para os arquivos compartilhados com todo o Brasil, e se, ainda sim nada achasse, não ficaria irritado com o beco sem saída, só não queria ficar no quarto, ou melhor, em casa agora que despertou, de forma muito estranha. Na verdade, era a primeira vez que sentiu medo, o verdadeiro medo.