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terça-feira, 20 de maio de 2014

Uma vida, cinco anos, e quinze dias [PARTE III]

DIA CATORZE

    Como de costume, Malaquias chegou ao departamento e foi atrás de um bom copo de água, aquela onda de calor, que já durava mais de 40 dias, o deixava sempre com sede e muito irritado. Quando chegou no seu escaninho, ouviu a voz de seu leal amigo chegando pelo corredor, chamando o seu nome.
– Chegou hoje cedo o resultado do material na ferida e no lenço do sargento....
– Coxinha – atalhou Malaquias.
– Como? Já têm apelidos de namoro? – brincou Cabral. – Bom, está aqui o resultado, e como o pessoal lá do laboratório sabia que era para você, fizeram tudo completo e com a maior velocidade que puderam.
– O que temos?
– Não sei meu amigo, deixei essa honra pra você.
    O inspetor estranhou o peso do envelope pardo que lhe foi estendido, abriu e retirou o chumaço de papéis lá de dentro, percebeu que haviam mais folhas que o normal, e começou a folhear.
– Isso só pode estar errado – constatou incrédulo o inspetor ao terminar de ver a papelada.
– Como? – disse o delegado com ar de interesse, conhecia o homem à sua frente, e o que quer que lhe deixasse abismado era digno de ser compartilhado.
– Os laudos apontam que o corte na testa da vítima, apresenta resíduos compatíveis com resíduos de mangue, além disso, foi feito com um objeto perfuro cortante bem afiado. Existem ainda, vestígios de prata, com a idade estimada de 500 anos – a última parte referente aos vestígios de metal foi dito com voz fraca e vacilante.
    O silêncio se levantou entre os amigos como uma pesada cortina ante uma janela iluminada pelo sol de verão, parados no corredor, ambos olhando para a folha, no qual os técnicos haviam impresso o laudo com a datação do metal. De súbito, caminharam pelo corredor, ao mesmo tempo, como se precisassem de ar puro para digerir o disparate em tinta negra, sobre a celulose branca. As incongruências e as impossibilidades cercavam esse caso, a busca pelo símbolo, ou seja, lá o que era aquilo na testa do defunto, não dera em nada útil até o momento. A única pista concreta era que, esse não era um caso isolado, haviam mais três anteriores, com uma única característica em comum, essa marca na testa, diferentes entre si, mas iguais no padrão. Além disso, o primeiro caso, o único que conseguira ler toda a papelada do caso, também se tratava de um homem com inúmeros julgamentos e um número proporcional de absolvições perante a justiça, os demais casos, ainda deveriam ter as pastas desenterradas de algum fórum ou delegacia, o que poderia levar muito tempo. Malaquias já começava a achar uma grande ironia, pois ainda ouvia as conversinhas de canto de corredor, em que ele era o “velho doido”, “vovô buscapé” e “biruta”, e esse caso vinha sobre medida para ele, um caso maluco para um doido.
    O inspetor e o delegado pararam à frente do departamento, observando o vai e vem de pessoas na rua, enquanto examinavam suas consciências, o delegado Cabral fumava um cigarro em longas baforadas, enquanto Malaquias sorvia pequenos goles de água e imaginava o que as pessoas debaixo daquele sol estavam pensando ou imaginado, essa manobra visava distrair por algum tempo do problema que era esse caso. Sua cabeça girava em todas as direções e posições, mas não divisava, nem de longe, uma saída lógica. Por fim, Cabral quebrou o longo silêncio ao terminar o seu Belmont.
– Vou voltar para minha sala, antes que todos achem que sai de fininho, e antes que resolvam ir buscar pizzas na puta que pariu – disse o delegado, já de volta ao bom humor.
– Vai na fé – respondeu Malaquias, meio para dentro, ainda perdido nos pensamentos – Tenho uns endereços aqui, e vou dar uma checada, quem sabe não cavo algo com as testemunhas.
    Estes endereços ao qual o inspetor se referia, já estavam em seus bolsos a alguns dias, mas estava adiando esses encontros, em geral muito desgastantes, pois nem todos quereriam falar, ou falariam de graça. Outras testemunhas nem estavam nestes endereços informados à polícia, e com esse verão estranho seria ainda pior essas acareações. Pensou também no material coletado que apontava composições compatíveis com o mangue, não era bom de matemática, mas, mesmo com o helicóptero voando por todo o dia, levaria uns cinco, talvez seis dias para cobrir toda essa área se o clima ajudasse. Mas o governo e os grandões da civil jamais aprovariam um disparate desse, se tentavam economizar até nos treinamentos e na reciclagem de agentes, preferindo videoaulas às antigas palestras, de lá voos de reconhecimentos sem grande necessidade. Com esses pensamentos, caminhou até o estacionamento e saiu com o carro.
    As sessões de perguntas e respostas não ajudaram muito, como o previsto. Pessoas que frequentam aquela área da cidade não simpatizam com os servidores públicos, seja para o que for, alguns com medo de serem reconhecidos, outros por terem implicações com a lei, mas já era sabido por Malaquias que, dificilmente, seria dali que sairia a chave mestra deste mistério. Mas foi no caminho de volta que teve uma epifania, e trocou de rota, e tomou o caminho para hotel, cuja parede ajudava a formar o beco do local do “crime”. Ao chegar, pediu um quarto, um quarto específico, claro que antes de entrar, deixou o carro no local mais seguro que pode achar, em frente a um posto da polícia militar, e deu algumas voltas no quarterão para planejar a ação.
– Eu vou esperar uma pessoa, assim que ela chegar, vai ligar para o meu celular, mas eu já gostaria de entrar para o quarto – disse o policial.
– Sim, mas vai custar um pouco acima da tabela – disse o homem atrás do balcão.
    Se chegasse botando banca de polícia, o recepcionista colocaria todos os problemas do mundo para evitar a investigação, mas se pingasse algum dinheiro de um cliente desconhecido com exigências incomuns, mas não exageradas, seria mais fácil de Malaquias chegar ao seu objetivo, olhar o hotel por dentro e ficar no quarto do térreo, com a parede virada para o beco. Ao entrar, trancou a porta e começou a procurar e observar tudo daquele lugar, poderiam ter atirado a parte do corpo sem grande esforço e com certa facilidade de deixa o local no meio do alvoroço que ocorreria após a descoberta, ou talvez até antes disso. A parede era incomum para os padrões brasileiros, pois a alvenaria era recoberta por uma outra camada de madeira, ou material parecido, no qual era aplicado o papel de parede, e não a pintura costumeira, viu que uma parte estava estranhamente estufada, e ao arredar um móvel do quarto encontrou um pequeno ponto escuro, que lembrava o material do solado de sapatos finos mergulhado na madeira como se fosse parte desta, então teve uma ideia, a primeira pista real surgira.
– Vou só ali no carro colega, esqueci uma coisa, disse o investigador ao balconista, e este apenas assentiu.
    Ao chegar no automóvel, abriu o porta-malas e vasculhou entre as ferramentas a procura de uma chave específica, e achou, a chave de roda, em forma de L, e a camisa extra que sempre carregava, saiu do plástico em que jazia, para dar lugar à ferramenta. Voltou para o hotel, acenou com a cabeça para o homem novamente, e entrou no quarto. Trancou a porta e começou o trabalho duro. Envolvendo a chave de roda no lençol, Malaquias esperava fazer pouco barulho quando começasse a bater contra o madeirame, mas ainda sim, com o início da exploração, houve bastante barulho, mas as pessoas naquele lugar estavam mais preocupadas com outras coisas, por isso não foi importunado ou questionado sobre a bagunça. Em pouco tempo quebrou a perde de madeira e viu a alvenaria. Entre essas duas paredes, corria o encanamento de água e esgoto, o escuro neste espaço era total, mas o mal cheiro era inconfundível, havia carne em avançado estado de putrefação ali, e para ter certeza, achou uma caixa de fósforos, riscou um palito e enfiou cuidadosamente na abertura que produzira, e a alguns centímetros de distância pode vislumbrar o que estava estufando a parede, parte do mistério estava resolvido, a metade que faltava do senhor Caeiro estava ali. Ligou para o departamento de polícia e para os técnicos, e em poucos minutos o circo estava armado de novo.
    Foi bem difícil retirar os restos mortais do executivo de onde se encontravam, retirar o madeirame foi fácil, mas a parte superior, a cintura para ser mais preciso, parecia ter se fundido à alvenaria do prédio, sendo preciso cortar o meio cadáver. O investigador acompanhou todo o processo de perto e depois de terminado os serviços, resolveu que já era hora de voltar para casa.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Uma vida, cinco anos, e quinze dias [PARTE II]

DIA CINCO

CINCO ANOS ANTES

– Por falta de provas, não podemos concluir, se o réu pegou a arma para cometer o crime que lhe foi imputado ou esta estava jogado atrás da porta como afirma a defesa. Fato, é que nunca teremos certeza de quem ou qual o motivo do assassinato da vítima, sra. Malaquias, portanto o júri aqui presente, assim como o juiz que vos fala, declara o acusado, Caio Alvares Malaquias inocente das acusações. Fim da sessão.
….
– Você foi inocentado Malaquias, mas devido ao grande apelo público, eu, no cargo de superintendente, não posso permitir que continue em seu cargo. Por tanto, seu novo posto a partir de amanhã, será a de escrivão do novo delegado a ser nomeado.
….

QUATRO ANOS ANTES

– Você não gosta do cargo de escrivão não é Malaquias? Pode falar, apesar de estar sentado na sua cadeira, somos amigos, e eu não estou aqui porque quero. Vou cavar algo para você. Deixa com o Cabral aqui.
….
– Meu amigo, saia de trás dessa cadeira, a partir de hoje será como nos velhos tempos, pega tudo la dentro e volte para as ruas. Não precisa agradecer, queria poder fazer mais, mas se cavar mais fundo, vai desmoronar em nós dois esse buraco.
….

TRÊS ANOS ANTES

– Esse aí não é o bunda suja que dedou o coronel? Vamo dar um corretivo nele….
….
– Ele tá morto? Ah, tá respirando, bota aquela surpresinha no bolso dele, enquanto eu ligo pros homi…. vai da chabu, mané….
….
– Essa é a última vez que converso com você Malaquias. Eu, como superintendente, já tô de saco cheio de falar com você. Vai lá e pede aposentadoria, é uma ordem, vai pescar e deixa todo o resto de lado. É UMA ORDEM!
– Se você não se aposentar, vão reabrir o antigo inquérito da morte da sua esposa, e com essa droga que estava no seu bolso, e esse laudo do psiquiatra que o Cabral fez sumir do processo, tu já era.
– Aqui atesta que tu é pinéu, todo mundo da polícia já sabe desse laudo, e só não dá mais merda, porque tem gente que te respeita. Sai por cima Malaquias. Vou repetir, é uma ordem
….

DOIS ANOS ANTES

– Fala meu amigo, é o Cabral. Sim, eu sei…. Não, o superintendente rodou, e tá uma zona isso aqui, eu cavei de novo, e se você ainda tiver afim, tenho a sua vaga de inspetor aqui guardada.
– Não, fica tranquilo, é sua, sem parceiro pra te pentelhar. Isso venha amanhã para a reintegração. Abraço.

    Era essa a rotina do inspetor Malaquias todas as noites, rever todos os pontos fatídicos e agradecer ao seu amigo de infância, Cabral, pela força. Apesar dele estar agora ocupando a cadeira que um dia o investigador ocupara, não havia rancor por isso, Cabral era um bom sujeito, e tocaria a DP com presteza e honestidade, se fosse ele Malaquias, a escolher, teria feito essa escolha sem pensar duas vezes. Tomou o diazepan e o sono veio como uma tempestade de verão, sem sonhos, sem remorsos.
    Quando acordou, foi um sobressalto, pois ouviu o próprio nome numa voz feminina vinda de algum canto escuro do quarto. Malaquias passou a mão na testa e tirou o suor frio que umedeceu toda a palma da sua mão direita, escorreu frio até o cotovelo, como se gelo, e assomou-se com o líquido que vertia da axila, até pingar e deixar marcas no lençol onde as gotas caíam. O relógio marcava 3:00 da madrugada, a hora do demônio, a hora das bruxas, a hora de toda a sorte de mal que rastejava sobre e sob a terra. Só havia uma alternativa, pegou o bloco de notas e um lápis no criado-mudo e desenhou a marca que vira no morto a algumas horas, e não sabia o porque se lembrara disso só agora. Vestiu a roupa e saiu com o intuito de ir a chefatura, remexer nos arquivos para ver se existia algo parecido, e se não achasse nada, passaria para os arquivos compartilhados com todo o Brasil, e se, ainda sim nada achasse, não ficaria irritado com o beco sem saída, só não queria ficar no quarto, ou melhor, em casa agora que despertou, de forma muito estranha. Na verdade, era a primeira vez que sentiu medo, o verdadeiro medo.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Uma vida, cinco anos, e quinze dias [PARTE I]

“Não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem.”
Dito popular
Por Antônio C Pereira
DIA ZERO
    A noite estava quente, mais do que o esperado para o verão, e naquela parte decadente da cidade, a temperatura fervilhava com as pessoas se acotovelando diante da fita amarela suspensa por cones laranja e branco reflexivo. A brisa só aumentava a sensação escaldante presente ali. O cochicho irritante percorria todos os quarteirões, trazendo mais e mais observadores para a cena bizarra que se desenvolvia naquela viela.
– Não pode passar desta fita, me'rmão. – Disse o policial em tom rude e imperativo
– Isso aqui dá permissão – disse o homem que estava a frente da multidão, tirando algo do bolso e mostrando ao policial.
– Desculpe investigador, pode passar.

– Vai levanta a fita ou tá difícil?
– Sim, pode passar.
    “Olha só pra esse coxinha, a fivela do cinto brilhando, o coturno polido e com o couro esticado, o uniforme novo com os vincos bem marcados durante o processo de passar roupas. Sargento? Aposto que é filho de algum grandão da PM, nunca viu dificuldade não é filho?”, pensava o policial civil, enquanto caminhava, e via-se o contraste entre os dois, inspetor Malaquias trajava uma calça jeans surrada e uma camisa com pequenas faixas azuis verticais, aberta até o terceiro botão devido ao calor, poderia ser confundido facilmente com um bicheiro de segunda linha, já beirando os 55 de idade.
– Pode me atualizar? – Pediu o investigador, desta vez, era ele que usava o tom imperativo e rude.
– Mas eu já disse tudo, não ouviu? Bom, umas “profissionais” estavam entrando no beco, talvez para se aliviarem, e deram de frente com a bizarrice, um homem cortado ao meio na altura da cintura, saíram gritando, ligaram para a Polícia Militar. Chegamos e cercamos a área e entramos em contato com vocês.
– Já sabem a identidade do sujeito?
– Sim investigador, Álvaro Caeiro, 36 anos, alguns processos, mas nenhuma condenação, respondeu o sargento puxando pela memória.
– O Cairo da Indústria Alva?
– Sim.
– Aquele que foi investigado por atentado ao pudor, estupro, abuso moral, e mais um caminhão de denúncias que não saíram do B.O.?
– Esse mesmo, já o conhecia?
– Não, mas já ouvi um monte de porcaria sobre ele. Então pegaram o safado.
– Acho que foi um pouquinho pior.
– Como?
– É melhor o senhor ver como está a cena.
    A cena era realmente surreal, parte do corpo jazia no chão inerte, o sangue escorria pela parede como se a metade ali presente tivesse sido arremessada contra a parede de um dos hoteizinhos que se projetava até o meio do beco, sujo, mal cheiroso e sem iluminação descente. A mancha de sangue começava mais ou menos na altura onde deveria ser a cintura do sujeito, o corte era reto demais e muito estranho, como se a outra metade tivesse saído dali como naqueles desenhos animados do Hanna Barbera. O sangue escorrera em vários sentidos, mas não se via qualquer sinal da outra metade homem, ou se ela havia sido arrastada dali.
– Tá uma merda do caralho não é inspetor?
    Malaquias olhou o jovem, que ostentava um sorriso largo e orgulhoso, como se tivesse dado sua primeira golada de cerveja na frente dos amigos para mostrar a sua masculinidade.
– Limpa essa boca suja, porra, tu beija tua mãe com essa cova? – Neste momento, a face severa de Malaquias, em nada transparecia o prazer que sentia agora, quase um prazer infantil, como quando um garoto descobre o banho gelado no verão tórrido como aquele estava sendo.
    Todo o contexto e o cenário daquele possível crime irritava Malaquias, as pessoas se aglutinando e discutindo o que tinha ocorrido, as “profissionais” fofocando e seus cafetões mandando, discretamente é claro, que voltassem à espera, o ar que subia do chão quente que trazia o cheiro de vodca barata e urina, tudo isso fazia o velho Malaquias se perguntar até quando aguentaria aquele purgatório.
– Ei, sargento, já coletou os depoimentos?
– Nada de útil, a perícia também está rodando por aí, pra ver se cava alguma coisa.
– E a outra metade do corpo, alguém tem ideia de onde esta?
– Não, tudo o que se sabe foi uma gritaria no beco, a voz de um homem pedindo socorro, Ninguém ligou, acharam que fosse um qualquer que deu uma “brincada” e queria escapar sem pagar.
– É estranho mesmo, esse cara, aqui neste lugar não combina, até a camisa dele foi cortada, e na mesma altura do corpo, muito estranho, – disse Malaquias em tom reflexivo enquanto contemplava e novo o meio morto – espere.
    O investigador notou agora, uma mancha enorme de sangue que cobria toda a testa, e escorria pela face, já meio seco. Não deu atenção na primeira vez que viu isso, pois acho que se tratava de um mero ferimento causado pela queda do corpo para frente, mas agora percebeu que o resto do sangue, ainda estava em estado líquido, e o incrível era que o pessoal da perícia deixou passar, como era Sexta a noite, essa equipe já devia ter umas cervejas na cabeça.
– Tem um papel aí sargento?
– Não, mas tenho um lenço, esse calor bota a gente pra suar….
– Me dê ele e me arranje um pouco d’água limpa.
– Pra tomar?
– Me arranja loGO DROGA.
    O sargento coxinha entregou o lenço branco e saiu a procura de água, Malaquias continuava a fuçar aqui e ali, primeiro em volta do cadáver, depois no bolso da camisa deste, colarinho, mangas da camisa branca de linho, aparentemente nova, usando a bic para manipular o tecido sem comprometer o lugar ou deixar suas próprias marcas por ali. Olhando de soslaio Malaquias pôde ver o sargento coxinha voltar com uma garrafa d’água fechada, e suando de tão gelada, por um segundo engoliu seco, com desejo de bebê-la, mas esta teria uma utilização menos nobre no momento.
– Tá aqui inspetor, não achei gasificada, mas vai servir para matar a sede.
– Se este presunto tiver sede, eu vou dançar “Madalena” – dizendo isso, Malaquias abriu a garrafa e umedeceu o lenço.
    Depois disto, passou levemente na face do morto, que olhava fixamente para o ombro esquerdo. A medida que o sangue seco era hidratado começou a se desfazer e aderir ao lenço do sargento, que olhava com um misto de surpresa admiração, e depois de algum tempo, a pele da testa do morto estava limpa e exibia uma ferida estranha, um losango, aparentemente cortado com um estilete, e, dentro e bem centrado, um círculo perfeito sem pele como um ponto final, ou a gema do ovo poligonal, ambos, sargento e inspetor, contemplaram por um período o achado, toda a movimentação em volta desta cena, pareceu diminuir, até cessar por algum tempo, fora de qualquer medição humana.
– Nunca vi isso, será ocultismo ou algum psicopata? Perguntou o oficial da PM.
– Não sei, não sei, mas vamos ver, respondeu, mais para si mesmo do que para o companheiro, ao mesmo tempo que estendia o lenço sujo a ele.
– Toma, entrega para a perícia, se tivermos sorte, vai ter alguma coisa além do seu DNA, e a do amigo aqui no chão. Se for um menino me avisa, concluiu em tom jocoso.
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terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

De Veras

Por Antônio C. Pereira
    O corredor se mantinha bem movimentado e cheio, as pessoas iam e vinham em um ritmo contínuo. A luz fluorescente fazia do corredor branco, divisórias alvas, e teto também branco um ambiente impessoal e estéril, mesmo com o vai e vem de pessoas. O corredor se estendia até onde a vista alcançava, e tirando raras exceções, mostrava-se bem iluminado, somente com pequenas faixas de sombras, com uma limpeza impecável que permitia a utilização do reflexo presente no mármore branco como um espelho, de tão lisa a sua superfície.
    Com movimento menos intenso que o corredor, as salas também apresentavam atividade razoável, algumas pessoas estavam sentadas em cadeiras de frente para as portas, quando eram abertas, uma pessoa saía de dentro deste cubículo e outra era chamada em seguida. Os que saiam das salas apresentavam um numero limitado de reações, alguns mostravam-se com uma felicidade imensa estampada em suas faces, como se houvessem ganhado um grande prêmio da loteria, ou tivessem recebido uma ótima notícia de seus médicos de família. Mas a maioria, mostrava-se triste e chorosos ao sair, existia ainda os mais exaltados, que eram prontamente contidos por homens de terno cinza, e guiados para a parte mais baixa do corredor.
    O que mais assustava Marcus era isso, as pessoas entravam nas salas para uma espécie de conciliação, ao que tudo indicava pela sua experiência como jurista, e saiam com expressões apáticas e melancólicas de lá. Os que passavam por ele nada diziam, e tão pouco ele queria interromper a caminhada de algum desconhecido no corredor, para interpelar sobre o que estava acontecendo naquele lugar, isso seria uma situação muito desconfortável, para não dizer uma demonstração de ignorância de sua parte.
    Agora que havia parado para pensar, Marcus não se lembrava como tinha chegado até aquele prédio, ou seja lá qual tipo de construção em que se encontrava agora, tivera um dia tranquilo e não tinha nenhuma audiência marcada para os próximos dois dias. Pediu a secretária que tentasse não agendar nada para essas datas, com a intenção de ter um pequeno período de descanso no meio daquele mês tumultuado de Dezembro. As horas parecia não correr, e a única coisa que parecia mostrar o passar do tempo era a contínua passagem dos transeuntes e as chamadas às portas. Ao olhar para o braço esquerdo, o advogado percebeu que não estava com seu relógio de pulso, teria ele esquecido de colocá-lo antes de sair de casa? Era bem possível, e exatamente por isso pedira essa folga nos compromissos do escritório, reservando-se a remexer e arquivar a papelada, com o intuito de baixar o nível de stress que vinha acumulando nos últimos anos. E como uma coisa puxa a outra, o relógio não era a única coisa que faltava, sua pasta que sempre jazia à esquerda de seu corpo não se encontrava em parte alguma, e o celular não estava no bolso de seu terno, e a falta desses dois objetos sim, geravam uma grande sensação de desconforto e preocupação, esquecer um relógio de pulso era perdoável, mas uma pasta do tamanho de dois livros grandes era demais para um advogado, mesmo que estivesse a beira de um colapso nervoso.
    Enquanto se repreendia mentalmente pelo esquecimento, Marcus ouviu seu nome ser chamado em uma das portas e prontamente se levantou, pondo-se a caminho da sala onde foi chamado. O ambiente estéril era replicado dentro da sala, uma mesa de mármore cinza se estendia em forma de T, um homem trajando terno branco sentava-se do lado esquerdo, outro homem vestindo um terno perto sentava-se a direita, onde também existia uma cadeira vazia, e o terceiro vestindo-se de cinza sentava-se no corte do grande T, não havia espaço para um escrivão e nem existia um escrivão na sala neste momento.
    Depois de estudar o local mentalmente, Marcus instintivamente ocupou a cadeira vazia e se preparou para o que viria, como já conhecia os trâmites, sabia que ele estava posição de julgado nesta audiência. Teria eu esquecido de alguma coisa? Pensava o advogado incomodado, enquanto aguardava o início da sessão.
– Comecemos as análises – disse o homem à cabeceira da mesa, de forma autoritária e firme – Marcus, aos 13 anos de idade, em férias o sítio de seus avós maternos, assediou sua prima mais nova, além de aliciá-la, confirma esse acontecimento?
    Um pequeno filme passou na cabeça do advogado, esse ocorrido jazia em suas memórias mais preciosas que possui, sua infância simples e difícil, porém povoada de muita felicidade e alegria, e o seu primeiro beijo, inocente e estabanado, que protegia até mesmo do conhecimento de sua esposa.
– Aliciamento e assédio são palavras muito fortes, se me permite dizer – Marcus, mesmo confuso, começou a tecer um método de defender-se sem desmentir o ocorrido – eramos muito jovens e pouco sabíamos da vida, foi um ato inocente e inofensivo, de dois jovens que queriam conhecer novas sensações, sem necessariamente conhecer o mundo, nada além disso.
    O que foi relatado como justificativa era verdade, tanto ele quanto a prima só queriam novas experiências, nada além disso, e mesmo que houvessem ido um pouco além disso, eram jovens e podiam atravessar a linha do bom senso naquele tempo.
– De veras inocente – disse o homem de terno preto, cortando o pensamento de Marcus.
– De veras culpado – disse o outro homem à frente do advogado no mesmo tom calmo do outro.
    Apesar de não apresentarem mais argumentos ao fato, o advogado entendeu que um desses homens o ajudaria a passar por esse julgamento, enquanto que o outro tentaria colocá-lo em maus lençóis, condenando todos as suas ações e tentativas de argumentação.
– A poucos dias, mesmo com a recomendação médica, Marcus tomou o carro e provocou um acidente, que computam as violações legais de dano a propriedade, lesão corporal leve, e negligência ao conduzir o veículo, – afirmou, aquele que conduzia a audiência.
– Sim, – Começou o réu em tom humilde –, é verdade que provoquei o acidente. Mas a utilização do remédio para uma cardiopatia apresentou um efeito colateral inesperado e raro, e por alguns instantes perdi o controle do sistema cognitivo. Contudo, com respaldo médico, é possível comprovar a minha total inocência quanto a isso – neste ponto da argumentação, o tom já havia saído da humildade para a certeza e confiança.
– De veras culpado.
– De veras inocente.
    O ambiente que cercava a sala neste momento era tenso e silencioso, um ar de reflexão dominava a sala. Neste momento, Marcus se lembrou da movimentação frenética do corredor, onde permaneceu por longo período, sem ter a certeza de quanto tempo havia, de fato, ficado sentado naquela brancura interminável, e observou com estranheza, a ausência de quaisquer ruídos externos ao ambiente em que estava agora.
– O senhor mantém uma amante a, pelo menos, dois anos e meio, mas já possuiu outros casos extraconjugais, com diversas mulheres, entre duradouros e casuais. Como justifica isso doutor?
    Marcus estava numa encruzilhada neste momento, sempre fora cuidadosos quanto a este assunto, mantinha protegida esta faceta a todo custo. Sentia-se culpado por ter amantes, mas era como um vício, mas o prazer pequeno, mesmo ante ao turbilhão da culpa que advinha depois dos encontros, o impelia a procurar outras mulheres para satisfazer essa torpe necessidade.
– Não, não há explicação senhor, – Marcus estava vencido – fiz o que fiz, sem ter uma justificativa para isso.
– Então se considera culpado deste ato.
Desta vez, o homem com terno preto manteve-se calado e com o olhar fixo à frente, e apenas uma fala soou pelo recinto:
– De veras culpado.
    De algum modo, o advogado sabia que o desfecho havia se dado no momento em que aceitou a culpa por seus atos, não pôde mentir nem ajustar os fatos para justificá-los, só havia a possibilidade de aceitá-los e esperar o que se desenharia nos próximos turnos da audiência. E assim os três homens começaram a debater, deixando o advogado perdido em seu próprio processo de reflexão e autoavaliação por algum tempo, até surgir a dúvida primordial.
– Desculpe interromper o fluxo inquisitório, – interveio Marcus meio choroso, meio tristonho – mas onde estamos e como os senhores possuem essas informações?
    O réu estava confuso e entregue ao caos, sem conseguir realizar mentalmente uma explicação para o que ocorria à sua frente, seus segredos e emoções estavam sendo expostos sem que ele pudesse controlá-los, nem mesmo o dito soro da verdade, poderia fazer dele, um advogado calejado e experimentado, ser tão passional e verdadeiro em suas argumentações e frases. Então, pela primeira vez o homem de terno escuro começou virou-se para Marcus e começou a explicar o porque de o advogado estar ali.
– Esse tipo de dúvida é comum, essa confusão acontece quando se morre de forma súbita e rápida. Você teve um infarto horas atrás e neste momento estamos decidindo o seu destino pós-vida.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Ah, o vilão

Muitas vezes, nos pegamos torcendo por um vilão, mesmo sabendo que ele vai ser derrotado ou ser redimido no final. Batemos palmas para cada frase enfática pronunciada por Lord Vader (Star Wars), concordamos com a cabeça a cada análise fatalista feita por Magneto (Universo Marvel), e reiteramos as falas do Cap. Nascimento (Tropa de Elite), com um "é isso aí". Mas, por que isso acontece? Não era para odiarmos esses caras?
Na maioria das vezes, detestamos os vilões, como o Rei Joffrey (Game of Thones), e Sarumam e Sauron (O Senhor dos Anéis). Mas as vezes o tiro sai pela culatra, pois o antagonista é bem construído e nos cativa logo de saída, e, a partir deste momento, temos a inclinação a aceitar e corroborar suas ambições e atos. Vale lembrar, que na maioria dos textos, filmes e séries, o "herói" só surge quando o vilão já está estabelecido, por um fator de lógica, se o herói já é poderoso, ele pode antecipar e derrotar o vilão antes deste alcançar o auge, e aí não temos o clímax da obra.
Como o antagonista nos é apresentado primeiro, e já completamente formado, nos apaixonamos por ele, enquanto o herói vem nos cativando cena a cena, capítulo a capítulo. Outro ponto que desperta empatia sobre essa figura caótica, é quando, antes de se dedicar ao mal, ele passou por alguma situação que passamos ou que poderíamos ter passado, com isso automaticamente, nos vinculamos ao personagem.
Sendo assim, podemos concluir que, o vilão pode ser um ótimo personagem, desde que tratado com carinho, e que ele deve ter um papel bem claro no texto, ele pode ser uma praga em pessoa e muito detestável como Joffrey, que foi construído para isso, ou envolvente como o Conde Drácula (Drácula 2000), criado para encantar e nos redimir, de certa forma.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Jogo Honesto

Por Antônio C Pereira

Num tempo em que o próprio tempo era jovem, o Ser Supremo, entediado com o vazio de sua obra, criou tudo o que existe. Homens, animais, plantas, as montanhas e os mares, as nuvens e o vento. Lorde Lua e Lady Sol também foram idealizados para compor seu vasto mundo, até onde a vista alcançava, e muito mais além. Mas, por sua perfeição e poder, apenas duas outras entidades podiam ver e interagir o Ele, seus nomes eram Morte e Eternidade, e ambos viveram por incontáveis eras à sombra Daquele, como sua obra mais excepcional.
Um dia, sem alarde, o Ser Supremos se cansou e partiu sem aviso, deixando todo o seu trabalho a cargo de seus dois sucessores, ambos deveriam zelar por tudo o que já existia, e também decidir o que era necessário criar dali para frente. Apesar de possuírem poderes iguais, seus ideais eram divergentes por quilômetros de distância. Ainda não havia de constituído o a ideia do bem e do mal, do certo ou do errado, por isso, nenhum deles era bom ou incorreto, apenas acreditavam em perspectivas antagônicas.
Um degrau acima da divergência existia o respeito mútuo entres as duas entidades, que permaneceu imutável até o tempo atingir a maturidade. Como já dito, a Morte e a Eternidade possuíam poderes similares, exceto por um detalhe, a primeira com sua face de criança sobre o pesado capuz preto podia perceber os desvios possíveis do destino e não a linha principal, enquanto o segundo, com sua aparência venerável e sábia de um idoso só conseguia consultar a linha mais provável do devir. E foi por isso que se deu o cisma entre eles.
A Morte, ao perceber os movimentos do destino previu que o homem logo se tornaria uma hedionda e incontrolável besta, a Eternidade, por sua vez, via o homem como aquele que governaria a obra após Morte e ele próprio irem encontra o seu criador, quando fossem chamados. Essa discussão levou gerações e gerações, até o senso de urgência da Morte soar mais alto que sua razão, e propôs ao seu antagonista, que resolvessem o futuro da humanidade em um jogo franco e direto. Eternidade, por sua vez, com um grande aperto no peito e sem nome para essa emoção aceitou, desde que ele sugerisse o jogo.
– Resolveremos este impasse de uma vez por todas. E que seja numa franca em uma única partida, disse a Morte, com uma voz profunda, que destoava de sua aparência infantil.
– Que seja, desde que eu selecione o modo de resolvê-lo. Respondeu a Eternidade, com a serenidade, que não possuía naquele momento.
– Concordo, comecemos sem demoras. O retardo deste entrave não beneficia nenhum de nós dois.
– Já tenho em mente algo que irá satisfazer a ambos, e não dará margem a reclamações posteriores. Completou o venerável.
– Diga, deixe os pormenores de lado por hora.
– Jogaremos uma partida de xadrez, a representação mais ordenada do caos, o que representa não só nós dois, como o fardo que aguarda toda a raça humana.
– Sim, sente-se e começaremos, para nós não existe os anos ou estações, mas para aqueles que estamos julgando, não existe tal benção.
Sentaram-se e compuseram o tabuleiro, a Morte com as peças negras, e a Eternidade com as peças brancas. E se sucederam dos movimentos, um após o outro, peça após peças. Torres, cavalos, peões e bispos, deslizavam para esquerda e para a direita, eram tomados e retirados. O jogo prosseguia e recuava, o campo de batalha quadriculado se tornava cada vez menos povoado com a progressão da partida.
Ambos jogaram de forma honesta e justa, o sol se pôs por tantas vezes que pararam de contar, mares secaram e oceanos surgiram. O homem dominou a terra e os mares, enquanto o jogo desenrolava-se. Os empates foram inevitáveis e incontáveis até que mais uma vez deliberaram. A aposta iria muito além da decisão do destino de uma espécie, a Eternidade deveria apostar também o seu mais precioso dom, a eternidade em si, a Morte, por sua vez, apostaria a sua finitude para demonstrar a sua boa fé e boa vontade.
Aceito o novo trato começou a rodada derradeira, não havia mais tempo para blefes ou distrações, era preciso achar uma brecha ou cavar uma se necessário. Um espírito competitivo nasceu ao longo destas partidas. O desejo de superar todas as artimanhas e estratégias era agora maior do que qualquer outra coisa. Morte e Eternidade tinham a necessidade de superar seu opositor. Até o momento decisivo, a Eternidade havia encurralado o rei preto e removido os dois cavalos da mesma cor, a Morte não tinha uma saída viável, sua derrota era certa. Em um momento de nervosismo, ela esbarrou em sua foice que, desequilibrou-se e foi ao chão, Eternidade sobressaltou-se e ergueu seu corpo da cadeira para não deixar a surpresa transparecer, e Morte, num completo desatino moveu as peças apenas uma casa para o lado. O que imperava no momento era apenas o espírito combativo, a razão abandonara a disputa quando a aposta aumentara.
Eternidade ao sentar não percebeu a mudança de configuração das peças e Morte fez a derradeira movimentação. Tomou o rei branco e declarou:
– Cheque Mate.
–Como?
– Fim de jogo.
– Meu desatino me deixou desatento? Disse Eternidade perplexo.
– Creio que a vontade de vitória o cegou irmão, concluiu a Morte, tentando parecer o mais natural possível.
– Agora, façamos o pagamento pela tua derrota.
– O prêmio você merece Morte, mas não de todo. Sei que trapaceou, mas fui tolo em não perceber a tempo, toma o teu pagamento.
Em um movimento brusco, Eternidade tiro o broche que sustinha a sua túnica e a atirou no chão. A força foi tamanha que o rubi se partiu, metade se manteve presa à estrutura dourada do broche, a outra metade se transformou em uma chuva rubra que caiu por todo o globo. Seguido da última frase de Eternidade:

– Por tua meia vitória terá a metade dos despojos, e os homens, por quem tanto anseia tomar a vida, terá a outra metade. Enquanto houver o sangue rubro nas veias, tu ó Morte, não os poderá tocar.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Que este Natal traga, não apenas presentes, mas também boas novas e muito sucesso a todos. A renovação da fé no próximo e em si mesmo. Esses são os meus votos.