Por Antônio C. Pereira
O corredor se mantinha bem movimentado e cheio, as pessoas iam e vinham em um ritmo contínuo. A luz fluorescente fazia do corredor branco, divisórias alvas, e teto também branco um ambiente impessoal e estéril, mesmo com o vai e vem de pessoas. O corredor se estendia até onde a vista alcançava, e tirando raras exceções, mostrava-se bem iluminado, somente com pequenas faixas de sombras, com uma limpeza impecável que permitia a utilização do reflexo presente no mármore branco como um espelho, de tão lisa a sua superfície.Com movimento menos intenso que o corredor, as salas também apresentavam atividade razoável, algumas pessoas estavam sentadas em cadeiras de frente para as portas, quando eram abertas, uma pessoa saía de dentro deste cubículo e outra era chamada em seguida. Os que saiam das salas apresentavam um numero limitado de reações, alguns mostravam-se com uma felicidade imensa estampada em suas faces, como se houvessem ganhado um grande prêmio da loteria, ou tivessem recebido uma ótima notícia de seus médicos de família. Mas a maioria, mostrava-se triste e chorosos ao sair, existia ainda os mais exaltados, que eram prontamente contidos por homens de terno cinza, e guiados para a parte mais baixa do corredor.
O que mais assustava Marcus era isso, as pessoas entravam nas salas para uma espécie de conciliação, ao que tudo indicava pela sua experiência como jurista, e saiam com expressões apáticas e melancólicas de lá. Os que passavam por ele nada diziam, e tão pouco ele queria interromper a caminhada de algum desconhecido no corredor, para interpelar sobre o que estava acontecendo naquele lugar, isso seria uma situação muito desconfortável, para não dizer uma demonstração de ignorância de sua parte.
Agora que havia parado para pensar, Marcus não se lembrava como tinha chegado até aquele prédio, ou seja lá qual tipo de construção em que se encontrava agora, tivera um dia tranquilo e não tinha nenhuma audiência marcada para os próximos dois dias. Pediu a secretária que tentasse não agendar nada para essas datas, com a intenção de ter um pequeno período de descanso no meio daquele mês tumultuado de Dezembro. As horas parecia não correr, e a única coisa que parecia mostrar o passar do tempo era a contínua passagem dos transeuntes e as chamadas às portas. Ao olhar para o braço esquerdo, o advogado percebeu que não estava com seu relógio de pulso, teria ele esquecido de colocá-lo antes de sair de casa? Era bem possível, e exatamente por isso pedira essa folga nos compromissos do escritório, reservando-se a remexer e arquivar a papelada, com o intuito de baixar o nível de stress que vinha acumulando nos últimos anos. E como uma coisa puxa a outra, o relógio não era a única coisa que faltava, sua pasta que sempre jazia à esquerda de seu corpo não se encontrava em parte alguma, e o celular não estava no bolso de seu terno, e a falta desses dois objetos sim, geravam uma grande sensação de desconforto e preocupação, esquecer um relógio de pulso era perdoável, mas uma pasta do tamanho de dois livros grandes era demais para um advogado, mesmo que estivesse a beira de um colapso nervoso.
Enquanto se repreendia mentalmente pelo esquecimento, Marcus ouviu seu nome ser chamado em uma das portas e prontamente se levantou, pondo-se a caminho da sala onde foi chamado. O ambiente estéril era replicado dentro da sala, uma mesa de mármore cinza se estendia em forma de T, um homem trajando terno branco sentava-se do lado esquerdo, outro homem vestindo um terno perto sentava-se a direita, onde também existia uma cadeira vazia, e o terceiro vestindo-se de cinza sentava-se no corte do grande T, não havia espaço para um escrivão e nem existia um escrivão na sala neste momento.
Depois de estudar o local mentalmente, Marcus instintivamente ocupou a cadeira vazia e se preparou para o que viria, como já conhecia os trâmites, sabia que ele estava posição de julgado nesta audiência. Teria eu esquecido de alguma coisa? Pensava o advogado incomodado, enquanto aguardava o início da sessão.
– Comecemos as análises – disse o homem à cabeceira da mesa, de forma autoritária e firme – Marcus, aos 13 anos de idade, em férias o sítio de seus avós maternos, assediou sua prima mais nova, além de aliciá-la, confirma esse acontecimento?
Um pequeno filme passou na cabeça do advogado, esse ocorrido jazia em suas memórias mais preciosas que possui, sua infância simples e difícil, porém povoada de muita felicidade e alegria, e o seu primeiro beijo, inocente e estabanado, que protegia até mesmo do conhecimento de sua esposa.
– Aliciamento e assédio são palavras muito fortes, se me permite dizer – Marcus, mesmo confuso, começou a tecer um método de defender-se sem desmentir o ocorrido – eramos muito jovens e pouco sabíamos da vida, foi um ato inocente e inofensivo, de dois jovens que queriam conhecer novas sensações, sem necessariamente conhecer o mundo, nada além disso.
O que foi relatado como justificativa era verdade, tanto ele quanto a prima só queriam novas experiências, nada além disso, e mesmo que houvessem ido um pouco além disso, eram jovens e podiam atravessar a linha do bom senso naquele tempo.
– De veras inocente – disse o homem de terno preto, cortando o pensamento de Marcus.
– De veras culpado – disse o outro homem à frente do advogado no mesmo tom calmo do outro.
Apesar de não apresentarem mais argumentos ao fato, o advogado entendeu que um desses homens o ajudaria a passar por esse julgamento, enquanto que o outro tentaria colocá-lo em maus lençóis, condenando todos as suas ações e tentativas de argumentação.
– A poucos dias, mesmo com a recomendação médica, Marcus tomou o carro e provocou um acidente, que computam as violações legais de dano a propriedade, lesão corporal leve, e negligência ao conduzir o veículo, – afirmou, aquele que conduzia a audiência.
– Sim, – Começou o réu em tom humilde –, é verdade que provoquei o acidente. Mas a utilização do remédio para uma cardiopatia apresentou um efeito colateral inesperado e raro, e por alguns instantes perdi o controle do sistema cognitivo. Contudo, com respaldo médico, é possível comprovar a minha total inocência quanto a isso – neste ponto da argumentação, o tom já havia saído da humildade para a certeza e confiança.
– De veras culpado.
– De veras inocente.
O ambiente que cercava a sala neste momento era tenso e silencioso, um ar de reflexão dominava a sala. Neste momento, Marcus se lembrou da movimentação frenética do corredor, onde permaneceu por longo período, sem ter a certeza de quanto tempo havia, de fato, ficado sentado naquela brancura interminável, e observou com estranheza, a ausência de quaisquer ruídos externos ao ambiente em que estava agora.
– O senhor mantém uma amante a, pelo menos, dois anos e meio, mas já possuiu outros casos extraconjugais, com diversas mulheres, entre duradouros e casuais. Como justifica isso doutor?
Marcus estava numa encruzilhada neste momento, sempre fora cuidadosos quanto a este assunto, mantinha protegida esta faceta a todo custo. Sentia-se culpado por ter amantes, mas era como um vício, mas o prazer pequeno, mesmo ante ao turbilhão da culpa que advinha depois dos encontros, o impelia a procurar outras mulheres para satisfazer essa torpe necessidade.
– Não, não há explicação senhor, – Marcus estava vencido – fiz o que fiz, sem ter uma justificativa para isso.
– Então se considera culpado deste ato.
Desta vez, o homem com terno preto manteve-se calado e com o olhar fixo à frente, e apenas uma fala soou pelo recinto:
– De veras culpado.
De algum modo, o advogado sabia que o desfecho havia se dado no momento em que aceitou a culpa por seus atos, não pôde mentir nem ajustar os fatos para justificá-los, só havia a possibilidade de aceitá-los e esperar o que se desenharia nos próximos turnos da audiência. E assim os três homens começaram a debater, deixando o advogado perdido em seu próprio processo de reflexão e autoavaliação por algum tempo, até surgir a dúvida primordial.
– Desculpe interromper o fluxo inquisitório, – interveio Marcus meio choroso, meio tristonho – mas onde estamos e como os senhores possuem essas informações?
O réu estava confuso e entregue ao caos, sem conseguir realizar mentalmente uma explicação para o que ocorria à sua frente, seus segredos e emoções estavam sendo expostos sem que ele pudesse controlá-los, nem mesmo o dito soro da verdade, poderia fazer dele, um advogado calejado e experimentado, ser tão passional e verdadeiro em suas argumentações e frases. Então, pela primeira vez o homem de terno escuro começou virou-se para Marcus e começou a explicar o porque de o advogado estar ali.
– Esse tipo de dúvida é comum, essa confusão acontece quando se morre de forma súbita e rápida. Você teve um infarto horas atrás e neste momento estamos decidindo o seu destino pós-vida.
